Ao sul do Espírito Santo: território, sesmarias e poderes (1679 a 1822)
Nos últimos anos, a historiografia lançou novos olhares sobre a aquisição de terras no período colonial, especialmente em relação aos procedimentos jurídicos para a concessão e confirma de cartas de sesmarias. O estudo sobre as cartas de doação de sesmarias tem potencial para além da questão da ocupação e distribuição da terra, ao permitir discutir as relações de poder entre a elite agrária, o poder local, as autoridades portuguesas e ao iluminar os atores políticos no campo jurídico como agentes judiciais, homens livres pobres, indígenas, escravos africanos ou afrobrasileiros, elite agrária, representantes da coroa . Em outras palavras, o estudo do procedimentos jurídicos de concessão e confirma de sesmarias torna possível delinear os meandros da política, sociedade e economia colonial.
É a partir de novos delineamentos historiográficos que a proposta do presente projeto se concentra na aplicação do regime jurídico das sesmarias no cotidiano colonial e na prática social a ela relacionada. A Lei de Sesmarias, promulgada em Portugal no ano de 1375, durante o reinado de D. Fernando, sendo, depois, incorporada às Ordenações Afonsinas de 1446 e às ordenações posteriores, foi criada em um contexto de crise a fim de estimular a produção agrícola no reino. As sesmarias consistiam em doações de terras feitas pela Coroa portuguesa a pessoas que apresentassem interesse e cabedal suficientes para explorar os terrenos requeridos. A legislação determinava o domínio útil da terra, em que cabia ao beneficiário cultivá-la, sob o risco de perda da concessão e redistribuição de terras incultas pela Coroa.
Durante o processo de ocupação e conquista da América, o regime jurídico das sesmarias foi transplantado de Portugal e perdurou até a independência do Brasil, constituindo-se na principal forma de distribuição e acesso a terras nos espaços coloniais portugueses. Todavia, a legislação adquiriu contornos distintos em relação ao reino, sendo alvo de contínua reformulação diante das conjunturas e dos projetos para os domínios ultramarinos. De modo que a legislação sobre as sesmarias no Brasil é composta por uma série de ordens, alvarás, provisões e outros documentos oficiais que circulavam entre os dois lados do Atlântico, inexistindo um corpo legal uniforme e coerente sobre a matéria. Por isso, a análise da aplicação desses instrumentos normativos deve ser feita juntamente com as disposições locais. Isso porque a área e o contexto específico interferiam na resolução adotada pela Coroa portuguesa e por suas autoridades ultramarinas no tocante às datas de terras. Apesar de a historiografia utilizar a expressão sistema sesmarial para se referir ao assunto, não havia um sistema coeso pautado em um conjunto legal capaz de regular o acesso à terra em todas as capitanias da América portuguesa. À despeito da falta de coesão, no ultramar, as sesmarias foram um instrumento de colonização, na medida em que incentivaram a ocupação territorial e a dilatação das fronteiras.
Além de reforçarem os vínculos de vassalagem com o rei, contribuindo para a integração dos súditos e das áreas coloniais à Coroa portuguesa. A concessão das cartas de doação de sesmarias estava imersa na lógica da cultura política do Antigo Regime, pautada nos critérios de procedência e de riqueza, sobretudo, na posse de pessoas escravizadas. A autonomia das diversas autoridades investidas na distribuição dos títulos de terras favoreceu parte da elite local ligada a esses agentes. A moral do Antigo Regime regulava as mercês dadas pelo rei por meio de certa economia do dom em que os serviços prestados ao rei eram devidamente remunerados e assumiam a forma de concessão de terras e até de ofícios régios. Busca-se, portanto, investigar os títulos de sesmarias como dádiva, mas também como instrumento jurídico que selava a aliança entre autogoverno local, e a monarquia lusitana.